Pesquisas brasileiras mostram que a exposição aos agrotóxicos pode atingir tanto a saúde reprodutiva dos homens que atuam nas lavouras quanto das suas companheiras, que acabam sendo contaminadas pela convivência.
Rachel*, 32 anos, mora em uma região de grande produção agrícola no interior do Mato Grosso. O marido é agrônomo e tem contato direto com a lavoura. A identidade deles será preservada para evitar represálias. O casal sonha em ter filhos, mas as gestações não vinham sendo bem-sucedidas. A mulher passou por três abortos espontâneos de repetição, ou seja, interrupções gestacionais que ocorrem antes dos três meses, em um período de três anos.
Até então não havia nenhuma causa aparente que justificasse a dificuldade em levar a gestação adiante. Na quarta tentativa, inundada de frustrações, a obstetra a encaminhou para a nutricionista clínica Gabrieli Comachio, que atua em outro município da região, Sorriso, conhecido como a Capital Nacional do Agronegócio.
Atenta à realidade da população local, a nutricionista solicitou exames para verificar o grau de exposição a produtos tóxicos. O teste laboratorial de colinesterase é um deles. Se o nível da enzima, que é responsável por controlar os impulsos nervosos para os músculos, estiver alterado, indica possível exposição prolongada a agrotóxicos, uma vez que as substâncias químicas podem inibir a atividade dessa enzima.
De acordo com a nutricionista, como os níveis basais de colinesterase sofrem variação de uma pessoa para outra, recomenda-se o uso de um valor de referência da atividade enzimática, obtido de uma população não exposta.
Exames adicionais também são recomendados para investigar a relação com outros fatores de saúde. Comachio afirma que encontra resistência de pacientes em se submeter ao exame. Muitos, porém, se surpreendem com os resultados. A falta de orientação e consciência sobre o uso de equipamentos de proteção é uma realidade observada na sua prática clínica.
“Desde 2019, quando direcionei meus atendimentos para a área materno-infantil, tenho presenciado um número muito grande de abortos de repetição, de casais jovens com problemas de fertilidade e que precisam de um tratamento específico para melhorar os seus exames de saúde. Tenho como praxe, desde que participei do Fórum Mato Grossense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos na Saúde, solicitar alguns exames, principalmente o de colinesterase”, contou Comachio.
Os resultados dos exames de Rachel e do seu marido apresentaram alterações expressivas. Embora não tivesse contato direto com a aplicação dos produtos químicos na lavoura, a mulher costumava caminhar no meio da plantação e lavar as roupas contaminadas do marido. Comachio sugeriu que os dois fizessem algumas alterações nos hábitos de vida e alimentares.
O homem foi orientado a usar todos os equipamentos de proteção durante o seu trabalho de campo, como luvas e máscaras. Rachel foi instruída a evitar contato com a plantação e a fazer uso dos equipamentos de segurança ao lavar as roupas contaminadas. Além disso, a nutricionista recomendou o uso de alguns suplementos alimentares, a prática de exercícios físicos e o consumo de alimentos preferencialmente orgânicos (sem uso de agrotóxicos).
Rachel já chegou ao terceiro trimestre da gestação sem nenhum problema de saúde. Os exames indicam que ela e o bebê estão saudáveis e fora de perigo. “A paciente me contou que não havia tomado todos esses cuidados nas gestações anteriores. Então, pode ter havido impacto [com os novos hábitos]. Agora que ela está prestando mais atenção no que está comendo e cuidando com essa questão de não se expor tanto, a gente acredita que essas mudanças podem ter sido de muita valia para os resultados de sucesso na quarta gestação”, avaliou a nutricionista.
Um estudo publicado no livro Desastres Sócio-Sanitário-Ambientais do Agronegócio e Resistências Agroecológicas no Brasil, produzido por pesquisadores do Núcleo de Estudos Ambientais, em Saúde e Trabalho, da Universidade Federal do Mato Grosso (Neast/UFMT), identificou, com base em dados públicos, que nas regiões com maior uso de agrotóxicos e área plantada, as taxas de internação por aborto espontâneo são maiores.
Uma das pesquisadoras, Mariana Soares, que é sanitarista e mestre em saúde coletiva, explica que esse é um estudo epidemiológico, do tipo ecológico, que analisa um grupo de indivíduos de determinadas áreas geográficas.
“Pelo fato de ela [a personagem de nossa história] residir nesse local, com um dos maiores índices de exposição a agrotóxicos; e pelo fato de a literatura demonstrar que os agrotóxicos são mutagênicos e teratogênicos, o que possibilita alterar o óvulo e o espermatozóide; a exposição pode ser um fator associado ao abortamento espontâneo”, avalia a pesquisadora.
Quando Soares fala que o agrotóxico tem potencial mutagênico e teratogênico, significa que o produto químico é um agente capaz de causar dano ao DNA e provocar doenças como o câncer ou afetar o desenvolvimento pré-natal.
Segundo o estudo, baseado em dados populacionais do IBGE, internações por aborto do SUS e de produção agrícola do Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (Imea), o Mato Grosso registrou 10.073 internações hospitalares por aborto, sendo 2.700 por abortos espontâneos, com média anual de 900 abortos.
Quase metade das mulheres que foram internadas por sofrerem aborto espontâneo (47,5%) tinha entre 20 a 29 anos. A taxa média de aborto variou de 0,8 a 36,2 abortos/10.000 mulheres em idade fértil, com a maior taxa correspondente ao município de Nova Lacerda. A coleta das informações ocorreu entre 2016 e 2018.
Os dados mostram que houve aumento de 5,3% entre o primeiro e último ano da análise, sendo que em 2018, a taxa foi de 9,4 a cada 10 mil mulheres. Os números poderiam ser maiores se todos os casos fossem notificados ao sistema de saúde.
“Nós temos um coeficiente bastante alto [para o Mato Grosso]. Se no Brasil a taxa de abortos espontâneos é de 4 ou 5 [a cada 10 mil mulheres], no Mato Grosso é 9. E ainda há locais no estado que chegam a 36, então, estamos falando quea nossa taxa é duas vezes [maior] do que a do Brasil e, em algumas regiões, quatro vezes maior”, avaliou o médico especialista em saúde pública e pesquisador Wanderlei Pignati.
A pesquisa também apresenta o contexto em que essas mulheres estão inseridas e levanta os dados sobre o uso de agrotóxicos nas regiões de estudo. Levando em conta as 21 culturas analisadas, os pesquisadores identificaram que a média de área plantada foi de 15,1 milhões de hectares e o consumo de agrotóxicos foi de aproximadamente 220,6 milhões de litros.
Os dez municípios com os maiores coeficientes de aborto foram: Nova Lacerda, Nova Olímpia, Pontes e Lacerda, Alto Taquari, Campo Verde, Nova Santa Helena, Alta Floresta, Barra do Garças, Rondonópolis e Matupá. Apenas Alta Floresta não é considerado um município de grande produção agrícola.
Outro estudo publicado em 2016 pelo Neast/UFMT apontou que a exposição paterna a agrotóxicos, principalmente quando associada à baixa escolaridade materna, pode estar relacionada a maiores taxas de malformação fetal em Mato Grosso. A explicação para a relação com a baixa escolaridade está na falta de orientação sobre os cuidados na hora de lavar a roupa contaminada, como ocorreu com Rachel*. O estudo de caso-controle foi feito a partir de prontuários de todos os hospitais de referência públicos, privados e planos de saúde que atendem gestantes em Cuiabá. Os dados foram coletados entre março e outubro de 2011. A base de casos foi formada por crianças menores de 5 anos com malformações congênitas, e o grupo “controle” foi formado por crianças da mesma faixa etária, sem malformações.
As pesquisas levam em conta o contexto social, possíveis variáveis de interferência, como hábitos alimentares e consumo de álcool e drogas e o meio ambiente. No livro, por exemplo, os pesquisadores destacam que os resíduos dos agrotóxicos têm como destino a contaminação do ar, das águas das chuvas, dos rios, mananciais e solo.
“Os alimentos de consumo imediato também são afetados, como demonstram as pesquisas anteriores realizadas no estado, onde foram detectados agrotóxicos nos exames de sangue e urina de trabalhadores e no leite materno”, destaca o artigo.
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