Foi durante a 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), ocorrida em 22/09, que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse em alto e bom tom que o Brasil é “vítima” de uma campanha “brutal” de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal. Na ocasião, Bolsonaro responsabilizou os “índios” e “caboclos” pelas queimadas na Amazônia. Para ler matéria completa sobre isso, acesse aqui.
Essa e tantas outras falas da maior autoridade do Brasil demonstram o quão pouco ele conhece do próprio Brasil em que foi eleito para governar. O Movieco – Movimento Ecológico, em respeito e apoio ao meio ambiente e aos povos indígenas (que tanto emprestam de sua cultura e conhecimento a toda a sociedade) conversou com Ivaneide Bandeira Cardozo, de 61 anos, moradora de Porto Velho (RO), indigenista e lutadora pela causa ambiental desde sempre.
Para quem não conhece o termo, “indigenista” é uma pessoa especializada no trabalho com povos indígenas. Ivaneide também se apresenta como planetária, e com isso encontra uma maneira de dizer ao mundo que sua causa está muito além das fronteiras do estudo, propriamente dito.
Neidinha, como é conhecida por amigos e familiares, nasceu no Acre em 1959 e é bisneta de indígenas. Além disso, é também responsável pela Associação de Defesa Etnoambiental, ONG Kanindé (criada em 1992), entidade que luta há 28 anos pela preservação do meio ambiente e proteção aos povos indígenas da Amazônia.
Para esta guerreira das florestas, mãe de 5 filhos e recentemente órfã (a mãe faleceu de Covid-19 aos 79 anos), a bandeira que ergue em prol dos povos indígenas é importante desde que ela se entende por gente.
“Me criei na floresta de Campo Novo até os 12 anos de idade, quando fui morar na cidade para estudar. Minha mãe me ensinava a ler nas revistas Grande Hotel, Cruzeiro, Capricho, e em livros de bolso de histórias de bang bang, nas quais os ‘pioneiros brancos’ chegavam ao oeste americano e matavam os indígenas, se apossando das terras deles. Jurei que quando eu crescesse lutaria para que os indígenas tivessem suas terras e pudessem viver felizes na floresta, que defenderia os indígenas a terem seu território e sua cultura preservada”, relembra.
Esse desejo até poderia ser apenas um sonho bonito de criança se Ivaneide não tivesse arregaçado as mangas para fazer a ‘coisa’ acontecer. Após concluir o ensino médio, ela cursou faculdade de História, fez mestrado em Geografia, e por influência dos pais, sempre esteve na luta pela defesa e monitoramento do meio ambiente, da fauna e da agricultura. E foi daí que o trabalho efetivo surgiu, ganhou notoriedade e apoio.
O trabalho da Kanindé
Segundo Neidinha conta, a ONG Kanindé é mantida por recursos de projetos advindos de concorrência em editais governamentais, doações de seus associados e outras instituições não governamentais.
“São quase 300 aldeias beneficiadas e 52 povos. Antes da Covid-19 fazíamos a doação de cestas básicas e roupas; depois que a doença chegou até nós, ampliamos esse apoio para kits de limpeza, condensadores para respiração, apoio psicológico porque a doença é muito agressiva e deixa marcas profundas nas famílias e nas vítimas que sobrevivem, além de oferecermos também um núcleo jurídico para orientá-los”, explica.
Ela conta que as comunidades indígenas ficam muito afastadas da cidade e da capital, Porto Velho, e que o trabalho da Kanindé é de extrema importância para que os povos recebam esse apoio.
“A Kanindé trabalha com 21 povos (etnias) diferentes. Para chegarmos às aldeias, é preciso ir de carro até um determinado lugar e depois pegar um barco, ficando horas no rio para poder acessar as aldeias. Muitas famílias indígenas estão a 500 km da cidade”.
Quando questionada sobre a situação das queimadas na Amazônia e no Pantanal, ela atribui a responsabilidade ao poder público.
“A falta de implementação de políticas públicas e o total descaso com que o Ministério do Meio Ambiente trata a questão ambiental é o que tem gerado toda essa problemática. Também atribuo essa situação aos retrocessos nos direitos ambientais, a exemplo do que aconteceu no CONAMA”.
Ela conta que as comunidades indígenas vivem essencialmente da caça e da pesca. “Vivem da agricultura, da caça e das pescas. Com o excedente da produção compram bens de consumo que utilizam e que não são produzidos nas aldeias”.
Como Neidinha transita por diversos grupos, ao ser questionada sobre as condições de vida, saúde, segurança e educação dos povos ou comunidades indígenas com as quais mantém contato direto, é categórica.
“Eles recebem um atendimento precário. Não há médicos e outros profissionais de saúde nas aldeias. Isso fragiliza o atendimento e expõe o indígena a uma série de situações que colocam a vida deles em risco. A proteção dos territórios indígenas é mínima, ineficiente para conter os invasores. A FUNAI, órgão responsável pela proteção, está sucateado, sem recursos humanos, equipamentos e estrutura adequada para atender a demanda das terras indígenas”, relata.
Sobre o apoio ou políticas oferecidas pelo Governo Federal aos povos indígenas, ela diz que são ineficientes. “O apoio é deficitário na saúde, na segurança e na educação. O orçamento é mínimo e mesmo esse mínimo não é aplicado adequadamente”, denuncia.
Os reflexos diretos e indiretos da Covid-19
Segundo boletim epidemiológico do Ministério da Saúde – divulgado na segunda-feira, 19/10, foram registrados 15.383 novos casos de Covid-19 no Brasil. Desde o início da pandemia, o País acumula 5.250.727 casos confirmados do novo coronavírus. O número de mortes teve um acréscimo de 271 óbitos em 24 horas e elevou o total para 154.176.
Infelizmente Neidinha também teve alguém muito próximo ceifado de sua vida por esta terrível doença. No dia 01/10 ela perdeu sua mãe, Moêmia Bandeira, ambientalista e seringueira.
Dona Moêmia sofria de diabetes e tinha pressão alta. Segundo a filha relembra, a mãe ainda pegou uma infecção generalizada e ficou dez dias internada na UTI. O estado clínico da idosa era grave.
“Ela estava em casa quando teve os primeiros sintomas. Depois a levamos para fazer o teste rápido, mas deu negativo. Então resolvemos levá-la ao médico, que disse que mesmo dando negativo, acreditava que ela estava infectada. Minha mãe passou a tomar os remédios, mas foi piorando e manifestava muito cansaço. Com isso, foi encaminhada para UTI, onde ficou por dez dias até não resistir mais”, diz emocionada.
A ambientalista relembra que a mãe participou da fundação da Kanindé, que o trabalho que realizou foi essencial para construir e inspirar a pessoa que ela e suas irmãs se tornaram.
“Ela formou as filhas para defenderem as florestas e seus povos. Ela gostava muito da natureza e desde pequeninha me ajudou a gostar da floresta. Essa era Dona Moemia”, declarou.
A Covid-19 chegou com força às terras e comunidades indígenas. Ivaneide conta que possui 26 pessoas (parentes e indígenas) contaminados pela doença. “Morreram 4 Paiter Surui: Raimundo, Fabio, Iabibi e Renato, este último meu cunhado”.
Com a pandemia, os povos indígenas tiveram de ir à cidade para receber o auxílio emergencial, já que não havia nenhuma outra maneira de conseguirem acesso. Isso fez com que se expuseram à contaminação do vírus pela aglomeração na cidade e filas de banco.
“Eles não produzem sal, óleo, açúcar, remédios. E por isso precisam obter isso na cidade. Eles precisam do auxílio já que os medicamentos não chegam até eles. Além disso, os principais vetores da COVID-19 são os cultos religiosos que promovem aglomeração, invasão de madeireiros, garimpeiros e grileiros de terra, que invadem o território, desmatam, queimam, deixam lixo e colocam a vida dos indígenas em risco”.
Uma maneira de conter essas aglomerações, segundo ela, seria “criando barreiras sanitárias e protetivas em todas as terras indígenas, nas principais entradas das aldeias e nos locais onde invasores conseguem acessos”.
Após a morte da mãe, mesmo antes de viver o luto da perda, Neidinha arregaçou novamente as mangas e se propôs a ajudar quem precisava.
“Eles trataram minha mãe muito bem, com todo carinho e dedicação, apesar das condições do hospital de campanha serem muito precárias. Nós levamos material de higiene e limpeza para doação, após a morte dela, porque soubemos que muitas pessoas chegam ali sem ter condições de comprá-los. A assistente social agradeceu muito essa iniciativa”.
Neidinha relata ainda, de forma indignada, que em Porto Velho a população age como se não houvesse um vírus letal circulando no ar e roubando vidas. “Boa parte da população não usa máscara, não mantém isolamento social, não respeita a dor das famílias que perderam entes queridos. Eu digo que eles são não apenas eleitores do Bolsonaro, mas seguem tudo que ele diz como se fosse uma doutrina. Aqui, 73% da população votou nele e boa parte desse número repete as falas sem sentido que ele profere na mídia, diminuindo ou ridicularizando a doença e seus efeitos”.
Ela faz questão de valorizar a importância da medicina tradicional, usada para doenças indígenas. “Muitos dos tratamentos são feitos pelos pajés e por mulheres nas aldeias. Difere de povo para povo, mas são utilizadas plantas da floresta em rituais de cura”.
A situação da Amazônia
De acordo com o Programa Queimadas, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), até o último dia 15 de outubro, foram registrados 10.834 focos de fogo na Amazônia. O valor já é cerca de 38% superior em relação a 2019 – ano que teve a mínima histórica de fogo para o mês, após atuação das Forças Armadas na floresta entre o fim de agosto e setembro. A diferença é de somente 1%, por enquanto, em relação a outubro de 2018.
Como se isso não bastasse, o valor também já é superior aos registrados durante o mês inteiro em 2013, 2011, 2000 e 1998 (primeiro ano de registro).
Segundo os principais jornais, mesmo em meio a tais resultados, Hamilton Mourão, vice-presidente e chefe do Conselho da Amazônia, vem comemorando dados classificados por ele como positivos, como a redução no desmate (registrado pelo Deter, também do Inpe), nos meses de julho agosto e setembro. A diminuição, porém, ocorreu em relação a meses de recordes de destruição da floresta.
Para Ivaneide, que vive os reflexos das queimadas e luta contra o desmatamento e suas vertentes, o que essas frequentes queimadas na Amazônia têm gerado são o aumento de doenças respiratórias, já que a fumaça chega até Rondônia e outros lugares. Segundo ela, a cidade amanhece debaixo de fumaça. “Ficamos muito felizes esses dias quando choveu e amenizou um pouco a situação. Contudo, muitas vezes a cidade fica com o céu acinzentado”.
A visão da ambientalista sobre a postura do presidente Jair Bolsonaro não é nada positiva.
“Esse governo tem perseguido as ONGs, os povos indígenas e devastado o meio ambiente. A postura do governo favorece e incentiva a invasão de grileiros, garimpeiros e exposição à Covid-19. O atual governo é o maior propulsor do desmatamento na Amazônia. Não existem barreiras sanitárias”, denuncia.
Ao ser questionada sobre como resolver essa situação, expõe de maneira firme.
“Basta cumprir o artigo 231 da Constituição Federal. Esse artigo cuida da saúde, da valorização da vida e dos costumes dos indígenas. As terras indígenas estão desprotegidas, mas a Constituição daria conta de tudo se praticada”.
Educação, saúde e trajetórias indígenas
Ivaneide relata que a educação nas comunidades indígenas sempre deixou a desejar. Com a pandemia e as restrições inerentes ao momento, os problemas se intensificaram.
“As aldeias têm ensino fundamental com professores que vem da cidade, mas não existe na grade escolar aulas para ensinar a cultura indígena, a proteção das florestas. Os alunos recebem a mesma educação que os ‘homens brancos’, totalmente diferente da realidade que eles vivenciam. A cultura indígena não é preservada e poucas aldeias têm ensino médio. Alguns acham que pelo fato de existir ensino bilíngue isso torna o ensino diferenciado, mas isso não é verdade”, denuncia.
Ela também conta que os indígenas colocaram internet nas aldeias, mas que o sinal é ruim. “Como se isso já não fosse ruim o bastante, muitos deles também não têm computadores para estudar”.
Outra condição que ela compartilha com pesar é sobre as poucas oportunidades que os jovens estudantes têm. “Muitos que saem para estudar na cidade, fazer faculdade ou tentar concurso público, acabam vivendo na periferia e na miséria, sem ter emprego, tendo de viver em condições sub-humanas. Isso culmina para que muitos acabem largando os estudos”, conclui.