O Projeto de Lei PL 6.086/2023 da senadora Mara Gabrilli (PSD-SP) para regulamentar o exercício do Ayurveda no Brasil reascendeu uma discussão acalorada à respeito desse tema nos grupos de Whatsapp e canais do YouTube.
Esse Projeto de Lei conta atualmente com 218 votos contra e apenas 34 votos à favor.
A quantidade de votos nesse Projeto de Lei mostra, por si só, o quanto o Ayurveda ainda é incipiente no Brasil. Mais do que isso, o fato de termos mais votos contra do que à favor, mostra também que a maioria das pessoas (praticantes de Ayurveda) que estão se posicionando contra não sabem como um projeto de lei funciona.
Um PL (Projeto de Lei) se adapta ao longo do tempo. Pode-se incluir ou remover partes dele conforme a discussão amadureça. Sendo assim, não é uma decisão final monocrática que virá de cima para baixo. Não é o fim, mas sim o começo.
Precisamos começar essa discussão de algum lugar e a melhor maneira de se fazer isso é através de um projeto de Lei que esboce o que de fato será o Ayurveda no Brasil daqui para frente.
A Senadora Mara Gabrilli já deixou claro de onde veio a ideia de se criar o projeto, sua intenção e como o Brasil irá se beneficiar dessa proposta. Leia aqui as considerações dela sobre esse assunto.
Experiência pessoal
Apesar de não ser perfeito, o projeto é adequado para iniciarmos a discussão sobre esse assunto. Se isso não for feito, corremos o risco de deixar tudo como está e qualquer pessoa se sentir habilitada para sair por aí dando “dicas de Ayurveda” ou prescrever tratamentos dos quais não conhece em profundidade.
Isso já vem acontecendo e muito!
Vou compartilhar uma experiência pessoal. Certa vez atendi uma menina que fazia faculdade de Direito. Ela nunca fez qualquer curso de Ayurveda, mas gostou tanto do tratamento que passou a falar cada vez mais sobre esse assunto em suas mídias sociais.
Em pouco tempo ela começou a oferecer consultas de terapia Ayurveda para os seus milhares de seguidores. O pior disso tudo é que ela utilizava as minhas recomendações (que foram feitas exclusivamente para ela) como se pudessem servir para qualquer outra pessoa.
Isso mostra um equívoco terrível, por parte de algumas pessoas, de acreditar que o Ayurveda, por utilizar tratamentos naturais e com plantas, é inócuo, não envolva riscos ou possíveis efeitos adversos. Talvez seja novidade para você, mas nenhum tratamento a base de plantas é inócuo!
Qualquer pessoa que estude minimamente o Ayurveda sabe que oferecer um tratamento de uma Vata para um Kapha pode ser catastrófico! Contudo, não há nada dentro da Lei que temos hoje que possa corrigir esse tipo de comportamento e o mal que uma pessoa dessas (ainda que suposta e alegadamente bem intencionada) possa estar fazendo disfarçado de “cuidados naturais”.
Outra vez atendi uma pessoa que havia se consultado com uma Terapeuta Ayurveda famosa do Rio de Janeiro para tratamento de uma diarreia crônica e havia recebido a prescrição de Triphala, uma planta sabidamente laxativa. A paciente chegou extremamente magra para a consulta, com fadiga, falta de ar e piora do quadro.
No mês passado atendi uma senhora de 55 anos com IMC de 16,5 que havia se consultado com uma Terapeuta Ayurveda que orientou essa senhora a fazer uma terapia Langhana (terapia de redução de tecidos), abolir o consumo de derivados animais e realizar um Virechana (purgaçao terapêutica). O resultado foi ela emagrecer ainda mais, ficando cada vez mais debilitada, fraca e agora com dispneia.
Em ambos os casos, estamos diante de iatrogenia e imperícia, mas quem regulamentaria isso? A quem essas pessoas lesadas poderiam recorrer?
O Brasil não precisa apenas de um projeto de Lei que regulamente o Ayurveda, precisa formar profissionais melhores e melhor capacitados para não prejudicar a saúde das pessoas e piorar uma doença já existente.
Qualquer pessoa que atue na área da saúde deve estar preparada e consciente de que deverá estudar pelo resto da vida enquanto atuar no cuidado com as outras pessoas. A cada minuto novas tecnologias, mercados e profissões estão surgindo. Conforme a era digital avança, a velocidade das mudanças só tende a aumentar.
Por isso, é fundamental que estejamos dispostos a sair da nossa zona de conforto e buscarmos aprimorar nossas habilidades e competências a fim de nos mantermos no mercado de trabalho. A profissão de Terapeuta Ayurveda envolve vidas humanas e deveria ser levada com a mesma seriedade da medicina alopática.
Se manter atualizado, em constante evolução, aprendendo coisas novas e aprimorando as antigas aumenta as nossas chances de sucesso no futuro e nos destaca da concorrência. Esse comportamento nos mantém na “Zona de Segurança”, que é totalmente diferente da “Zona de Conforto”.
Imagine que você está passeando com seus amigos Terapeutas Ayurveda em uma Chalana lá pelas águas cristalinas da Serra da Canastra. Todo mundo mergulha na água para curtir um pouco e refrescar do calor do verão. Após algum tempo, a chalana vai embora.
Quem se manteve na “zona de segurança” da profissão soube mergulhar, curtir e voltar para a embarcação, pois se atualizou, estudou bastante, leu os Samhitas do Ayurveda e também buscou os artigos científicos e publicações indexadas nas melhores revistas científicas sobre o assunto, fez estágios, cursos, práticas e está sempre buscando ser um profissional melhor.
Aqueles que insistiram em ficar na “zona de conforto” nem perceberam a chalana indo embora. Com o frenesi daquele mergulho, ou do Hype que o Ayurveda ganha de tempos em tempos, ela achou que poderia ficar para sempre ali, falando as mesmas coisas, tratando seus pacientes da mesma maneira, com as mesmas “formulinhas prontas” de prescrição que é “boa para isso ou aquilo”. Não quis colocar as mãos na massa, tão pouco dar a cara à tapa nas redes sociais.
O futuro está em nossas mãos. A mudança pode vir por escolha própria e reflexão. Pode ainda vir pela dor e o desconforto. Por muito tempo da minha vida fiz as escolhas erradas que só me adoeciam. Só aprendi a ser médico, de fato, quando vivi na pele a mesma realidade de um paciente. Como não gostei daquilo que vi em nenhum dos lados da mesa do consultório, decidi agir para conseguir praticar e ensinar a medicina em que eu acredito.
Votar contra o Projeto de Lei é deixar tudo como está
Uma coisa é certa: o cenário do Ayurveda, da forma como está hoje, não se sustentará pelos próximos anos.
Existem dois caminhos possíveis que estão claros em nossa frente:
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De um lado, o Ayurveda pode começar sua regulamentação, entrar no SUS e nas Universidades pela porta da frente, ganhar o respeito da comunidade científica e das pessoas;
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Do outro, um tsunami de profissionais medíocres será despejado no mercado fazendo atendimentos baratos, pouco eficientes e até prejudiciais. Dentro desse cenário quase apocalíptico haverá uma poluição na forma de pessoas sem formação e sem qualquer qualificação, mas com muitos seguidores que poderá continuar a falar bobagens e piorar a saúde/doença de muita gente.
O prognóstico desse segundo caso é sombrio, mas muito real e possível. É o mais provável que aconteça se não apoiarmos essa regulamentação. Precisamos subir a régua da formação profissional do Terapeuta Ayurveda.
A situação simplesmente não pode continuar como está.
Ao longo desses anos dando aulas aos alunos do Curso de Formação de Terapeuta Ayurveda, percebi que muitas pessoas concluem os 2 anos de curso mesmo faltando, chegando atrasado, matando parte da aula, não prestando atenção à aula ou sequer estudando como deveria. Algumas simplesmente ignoram que existe estágio presencial.
Como uma pessoa dessas pode ter o mesmo respaldo de outra que se dedicou e abriu mão de tantas coisas na vida para estar ali presente, se esforçando para ser um bom profissional?
Estabelecer um limite mínimo de horas para começarmos a definir quem pode ou não pertencer a uma das 3 categorias de profissionais (Praticante Avançado de Ayurveda, Terapeuta Ayurveda e Consultor de Saúde Ayurveda) propostos pela senadora é só o começo.
O projeto de Lei ainda é super abrangente, inclui diversas nuances de formação (desde o Bacharelado em Ayurveda na Índia até um período mínimo de 4 anos exercendo atividades próprias do Ayurveda).
Mesmo quem ainda não preenche esses requisitos, de acordo com o documento, teria ainda tempo suficiente para se adequar ao regulamento, pois a Lei ainda nem sequer foi aprovada.
É por isso que precisamos LER O DOCUMENTO na íntegra! Assim não saímos por aí falando bobagens… Ainda não leu? Clique aqui e leia.
É muito trabalhoso fazer uma formação de Ayurveda
Existem pós-graduações na área da saúde que custam mais de R$3.000/ mês e duram 2 anos ou mais. Eu nunca vi um curso de Ayurveda que custasse mais de R$ 1.000/mês. A maioria está em torno de R$400 a R$600.
Uma coisa eu posso dizer com toda a certeza: para fazer algo bem feito, na área da saúde, precisamos de tempo e dinheiro. Quem não está disposto a investir nenhum dos dois deveria procurar outra área de atuação ou profissão.
O PL é só o começo
Tornar Lei um projeto no legislativo é uma construção coletiva. É a partir dele que o assunto poderá ser debatido. Quando uma pessoa vota contra ele o que ela está sinalizando? Que não está sequer disposta ao diálogo, que não quer conversar sobre o assunto.
O projeto foi construído baseado no documento “Benchmarks for the training in Ayurveda” (Referências da OMS para a formação em Ayurveda, em tradução livre), de 2022, do Departamento de Serviços Integrados da Saúde da OMS que contém recomendações de carga horária mínima para dois blocos de profissionais de acordo com sua formação:
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Ayurveda Practitioners (níveis básico, avançado e especialista);
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Ayurveda Service Providers (Terapeuta Ayurveda, Enfermeiro Ayurveda e Agente comunitário de saúde Ayurveda).
A ideia não veio do nada, a senadora não acordou um belo dia querendo, com uma canetada decidir os rumos da vida dos Terapeutas Ayurveda. A verdade do que está acontecendo por trás de tantos votos contra é um despeito advindo dos egos feridos.
É uma pena ter que dizer isso, mas a verdade é que dentro do meio do Yoga e do Ayurveda eu conheci pessoas com problemas sérios de caráter, honestidade e, muitas vezes, com um ego completamente doente.
As pessoas que trabalham com o Ayurveda de alguma forma e se opõem ao projeto gostariam de ser o centro das atenções, estar na ponta da lança como protagonistas, ganhar mais seguidores ou uma reputação que não foi conquistada ao longo de árduos anos de trabalho, mas a realidade da vida se impões: no final do dia, a pessoa que vota contra está prejudicando a si mesma e a toda essa comunidade que é apaixonada pelo Ayurveda e o Yoga
Conclusão
Não adianta comemorar que o Ayurveda foi incluído na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares da Saúde pela portaria do Ministério da Saúde n° 849, de 2017, se isso estiver apenas no papel.
O Ayurveda não conseguirá fazer parte do SUS se a profissão do Terapeuta Ayurveda ainda não estiver regulamentada. Sem essa definição não será possível criar editais e concursos públicos para que se contrate esses profissionais. Um Projeto de Lei para regulamentar o Ayurveda não serve apenas para que essa prática faça parte do SUS, ele envolve até mesmo a credibilidade e reputação do Ayurveda perante o país.
A quem interessaria que o Ayurveda não fosse regulamentado? Quem poderia se beneficiar de não tornarmos o Ayurveda uma prática de cuidado à saúde que age dentro da Lei, com regras, responsabilidades e deveres precisos? Ninguém! É por isso que eu votei sim ao Projeto de Lei da Senadora e convido você a fazer o mesmo clicando aqui.
Autor: Dr. Alfio Sampieri.
Créditos: https://www.druah.com/