O artigo de Sievers-Glotzbach et al. (2020), publicado no final de agosto no Jornal Internacional dos Comuns apresenta discussões para pensarmos as sementes como bens comuns, a partir da combinação de dois estudos de caso aprofundados, um na Alemanha e outro nas Filipinas. Em ambas as experiências, os autores destacam como os distintos sujeitos envolvidos têm se organizado para assegurar que as sementes não sejam apropriadas pelo mercado, tornando-se propriedade privada. Um dos caminhos construídos em ambos os países envolve o compartilhamento de conhecimentos e práticas sobre as sementes, garantindo o envolvimento ativo de agricultores/as e a responsabilidade coletiva na proteção contra a privatização. Por meio de revisão bibliográfica, os autores discutem que Sementes Comuns não é um conceito estabelecido na literatura. Ao contrário, é uma ideia que tem sido desenvolvida nos últimos anos a partir de algumas premissas. Uma das primeiras, refere-se à resistência frente ao processo de mercantilização e apropriação privada das sementes e dos recursos genéticos. Esse processo coloca na ordem do dia a necessidade de ideias criativas para implantar mecanismos coletivos de proteção às sementes e de valorização dos conhecimentos associados à biodiversidade. De acordo com Sievers-Glotzbach et al. (2020) as Sementes Comuns são capazes de combinar diferentes escalas, do local, ao regional e ao global, o que se expressa, por exemplo, na organização de bancos de sementes ex situ e in situ. Contudo, os autores destacam que é na escala local que tem se concentrado a maior atenção da literatura. Sob essa perspectiva, os autores discutem as redes locais de trocas, nas quais circulam as sementes tradicionais ou locais. Olhando para o âmbito local, postulam que o cuidado com as sementes faz parte de um conjunto de ações cooperativas que garante o acesso à diversidade genética, à segurança alimentar e à conservação da agrobiodiversidade. Eles concluem ainda que as redes de circulação informal de sementes são constituídas nos espaços locais. O caráter informal se deve ao fato de que esse modo de circulação não é regulado por normativas legais. As sementes circulam através de sistemas de governança participativos, que envolvem agricultores/as, pesquisadores/as e representantes de organizações não governamentais. Os bancos de sementes comunitários são citados pelos autores como exemplos de arranjos coletivos que contribuem na seleção, na conservação, na troca e no melhoramento participativo das sementes locais. Sementes comuns na Alemanha Kultursaat, na Alemanha, é uma associação sem fins lucrativos constituída por produtores independentes de hortaliças, plantas aromáticas e flores para cultivo comercial e jardineiros amadores. O princípio que orienta sua atuação é que as variedades vegetais são patrimônios culturais e bens comuns. Por essa razão, não devem nunca ser privatizadas, mas administradas de forma coletiva e com responsabilidade. Para a associação, os valores constitutivos do patrimônio cultural envolvem o direito dos/as agricultores/as de utilizar sementes livremente, de produzir conhecimentos sobre as variedades e de partilhar essas informações, garantindo a segurança alimentar das sociedades futuras. Realizado de formas compartilhada com os/as agricultores/as, o trabalho da Kultursaat consiste na identificação e na reprodução in situ de variedades adaptadas localmente, garantindo o acesso a sementes de qualidade e dispensando variedades híbridas ou geneticamente modificadas. Na Alemanha, é obrigatório o registro de qualquer variedade cultivada comercialmente. Diante dessa normativa, a Kultursaat registra as variedades em nome da associação, questionando a imposição de que os registros sejam feitos por indivíduos ou empresas. Além disso, a associação torna pública toda a informação relativa às novas variedades que desenvolve. As sementes produzidas pela Kultursaat podem ser cultivadas e armazenadas pelos/as agricultores/as, o que garante um processo continuado de adaptação e melhoramento de variedades. A premissa do trabalho da associação é que em vez de criarem um número restrito de variedades de alto rendimento para o mercado global de sementes, seus membros buscam produzir plantas geneticamente diversas, orgânicas e adaptadas às condições locais. A governança acontece por meio de grupos de trabalho e reuniões anuais. Ela é pautada na transparência de todo o processo de criação e desenvolvimento de variedades, envolvendo produtores/as e consumidores/as nos debates sobre métodos de melhoramento, critérios de seleção e registros de variedades. Sementes comuns nas Filipinas Nas Filipinas, Sievers-Glotzbach et al. (2020) realizaram seus estudos com a Masipag (Farmer-Scientist Partnership for Development), uma rede de agricultores/as, cientistas e organizações não governamentais que promove a agricultura orgânica em pequena escala, com o objetivo de gerar aos/às agricultores/as empoderamento, segurança alimentar e soberania no acesso a sementes. A rede, fundada em 1985, trabalha com mais de 30.000 agricultores/as e já resgatou aproximadamente 2.000 variedades de arroz. Dentre seus princípios, a rede rejeita registros, patentes e quaisquer outras normas de apropriação privada. Rejeita também o uso de variedades geneticamente modificadas e híbridas. A governança da rede acontece por meio de ações descentralizadas. A estrutura básica são os Organizações de Pessoas (OPs), que envolvem entre 10 e 50 agricultores/as. Hoje há cerca de 500 OPs, que são financeiramente e organizacionalmente autônomas. Os/as representantes de cada uma das OPs se organizam nos Corpos Consultivos da Província (CCP), que coordenam formações, treinamentos e a resolução de conflitos. No nível regional e nacional, assembleias anuais são organizadas pelos CCPs. Nos diferentes espaços, a rede atua de forma a garantir que o número de agricultores/as sempre supere o número de pesquisadores/as ou de outros atores envolvidos/as, na tentativa de que a tomada de decisão seja direcionada prioritariamente pelos interesses dos/as agricultores/as. O intercâmbio de conhecimentos entre os/as agricultores/as é uma das práticas centrais do Masipag. Todas as OPs promovem capacitações sobre manejo do solo, manejo das plantas espontâneas e diversificação da produção. Os intercâmbios envolvem um processo continuado de formação entre os/as agricultores/as no sentido de fortalecer a responsabilidade da sistematização de seus conhecimentos, sua produção e partilha como parte das ações de empoderamento. Aprendizados e considerações A partir da revisão da literatura científica sobre o assunto e dos estudos de caso na Alemanha e nas Filipinas, Sievers-Glotzbach et al. (2020) identificaram quatro atributos centrais que combinam diferentes escalas associadas às Sementes Comuns: 1) Responsabilidade coletiva; 2) Proteção contra a propriedade privada; 3) Manejo coletivo e descentralizado; e 4) Compartilhamento de conhecimentos e práticas. A responsabilidade coletiva é associada à noção de que o melhor caminho para proteger a biodiversidade é o uso compartilhado, expressando aí como distintos grupos de forma coletiva têm constituído, por gerações, variedades localmente adaptadas que promovem sistemas alimentares biodiversos, resilientes e ecologicamente sustentáveis. Assim como muitos outros estudos, os pesquisadores/as destacam que as redes de trocas de sementes são fundamentais para a conservação das sementes e da agrobiodiversidade. Da mesma forma, reafirmam que a ação coletiva é a prática que garante o livre acesso às sementes. A produção e o compartilhamento de conhecimentos associados às sementes são compreendidos como uma estratégica central na proteção contra a propriedade privada. O manejo coletivo e descentralizado refere-se exatamente aos arranjos de governança constituídos com o objetivo de garantir o livre acesso às sementes, cuja variabilidade associa-se às condições de cada lugar. O último ponto, compartilhamento de conhecimentos e práticas, refere-se à importância dos conhecimentos na promoção de comuns. Nesse sentido, as Sementes Comuns abrangem também os conhecimentos associados, que são transmitidos de um lugar para outro por meio das trocas e intercâmbios. As definições mais conhecidas de comuns estão ligadas ao uso coletivo de recursos naturais, como áreas de extrativismo. Uma das características desses sistemas é a rivalidade, ou seja, o uso do recurso de uma dada área por uma pessoa ou grupo diminui sua disponibilidade para os demais. Daí a centralidade da definição de regras de uso coletivo embutidas em sistemas sociais que garantam seu cumprimento e, assim, a conservação do recurso. Como destacam os autores, essa característica não se aplica às sementes, visto que elas podem ser facilmente reproduzidas. Além disso, quanto mais elas forem plantadas, mais elas estarão circulando. O conceito de rivalidade só entra em jogo no caso das sementes quando sobre elas incidem normas de propriedade intelectual. Para chegar na nova definição, os autores fazem uso do conceito de conhecimento comum, destacando que a conservação das sementes tem seu componente biológico intrinsecamente ligado a seus aspectos culturais. Os estudos de caso apresentados não chegam a abordar como se dá a participação de homens, mulheres e jovens nas experiências relatadas. No caso filipino, a venda de sementes é proibida, e os autores concluem que o financiamento é um dos gargalos para manutenção da iniciativa. De nossa experiência brasileira, sabemos que famílias agricultoras que vendem suas sementes em feiras ou encontros não deixam de doá-las ou trocá-las. Gerar renda a partir das sementes cultivadas é um incentivo a mais para mantê-las. No Brasil, a Lei de Sementes reconhece essas práticas e garante a não-exclusão das sementes crioulas das políticas públicas, como o PAA. No caso alemão, a lei não deixa essa brecha e obriga o registro. Talvez seja essa rigidez que leve os autores a apontarem para um regime de propriedade comum como alternativa, algo próxima da ideia de software livre. A abordagem, que é bem aplicável no caso dos programas de computador, pode não ser facilmente (ou desejavelmente) transposta para as sementes, uma vez que alguém teria que registrar as sementes e estabelecer as condições e regras de licença para seu uso. E aí o problema da apropriação pode reaparecer. Os autores concluem que a proposta de sementes comuns muda o foco do debate do manejo das sementes para os processos sociais de fortalecimento das comunidades e a criação de alternativas viáveis ao mercado convencional de sementes. Nada muito distante das estratégias por aqui desenvolvidas, como os bancos e casas de sementes, as feiras e festas de sementes, as redes de guardiãs/ões de sementes e o melhoramento participativo. A isso os autores dão o nome de sementes comuns. Nós chamamos de semente crioula, local, antiga, cabocla, de paiol, da paixão, do povo, da gente e da resistência. E assim, defendendo o livre uso das sementes e os direitos dos agricultores e rechaçando qualquer forma de propriedade sobre as sementes, chegamos à consigna “Sementes: Patrimônio dos Povos a Serviço da Humanidade”! Texto retirado do site www.aspta.org.br. Para ter acesso, clique aqui.